sexta-feira, 23 de março de 2018

Lido: A Casa do Eremita

Há já longos anos li um livro português que roçava pela ficção científica, visto passar-se num futuro razoavelmente distante, mas na realidade era uma alegoria com umas roupagens vagamente ciencioficcionais. Chamava-se esse livro, uma novela, A Cidade da Luz, e mostrava num Portugal invertido com capital na Cidade da Luz, uma espécie de Aldeia da Luz sob o efeito de esteroides, não aquela que foi submergida pelo reservatório do Alqueva, mas a que foi reconstruída a uma cota mais elevada.

Não gostei, como facilmente compreenderá quem for dar à opinião que na altura escrevi para o velho e-nigma.

Opinião publicada, e José Murta Lourenço, o autor, contactou-me para, além de corrigir uma imprecisão no meu texto, me perguntar se podia enviar-me um outro livro seu, para que eu o lesse e sobre ele opinasse. Disse-lhe que podia enviar-mo e eu o leria quando tivesse oportunidade, mas atenção, pois era provável que demorasse algum tempo, talvez anos. Murta Lourenço não se deixou intimidar e este A Casa do Eremita lá me chegou à caixa de correio, após o que foi parar ao fundo de uma das minhas pilhas de livros para ler, em parte por puro acaso, em parte porque a leitura do primeiro livro, de facto, não me deixou com muita vontade de voltar a experimentar as prosas do autor (nem de voltar a escrever uma opinião tão negativa como a que está no e-nigma e seria inevitável se voltasse a não gostar).

Passaram-se os anos e a pilha em que estava A Casa do Eremita foi sendo lida aos poucos e poucos. De profundamente soterrado, este livro chegou quase à superfície e por fim, por descargo de consciência e porque queria perceber se o livro também teria lugar no Bibliowiki, peguei mesmo nele para o ler. Sem grandes expetativas.

E fiquei agradavelmente surpreendido.

A prosa continua a não ser perfeita, é certo. Não há em Murta Lourenço aquela precisão linguística que faz as delícias de quem se interessa por literatura, especialmente pela sua vertente mais realista. Mas esta é uma obra significativamente mais bem construída, mais complexa e até mais divertida do que A Cidade da Luz. Trata-se, no essencial, de um romance histórico, desenvolvido em dois tempos diferentes. Um, o inicial, é o presente, ou um passado recente, no qual um tal Viriato chega a um velho casarão abandonado e dele toma posse, começando lentamente a investigá-lo e recuperá-lo. Trata-se da Casa do Eremita do título, o qual está bem escolhido pois é essa casa que liga o tempo de Viriato a um outro tempo mais antigo, em meados do século, no qual é narrada a história da família que mandou construir a casa, por entre breves (ou nem tanto) regressos ao tempo de Viriato para irmos acompanhando o que ele anda a fazer e a forma como se vai integrando na sociedade da região.

Mas é de facto a parte histórica que predomina, não só em extensão mas também em conteúdo. Somos apresentados à família, uma família burguesa e bem comportada, apesar das suas excentricidades artísticas. O filho da família faz-se engenheiro e, depois de um período a trabalhar em Lisboa, parte para Angola, onde as condições coloniais e a forma como as populações indígenas são tratadas vão causar um despertar da consciência política em vários dos membros da família. Talvez não total, pois já antes de partirem para África tinha havido contactos e desagrados com as injustiças sociais em Portugal, mas pelo menos um despertar mais rápido. A partir desse momento, a história ganha contornos mais trágicos e ligações à luta antifascista, onde a presença do Partido Comunista é quase sempre subtil mas existente, intercaladas por muito corrosivas (e por vezes bastante divertidas) bocas do autor a Salazar e aos seus acólitos.

O resultado é um livro bastante interessante. Está longe de ser um livro perfeito, talvez até nem seja propriamente um livro bom, mas também está longe de ser um mau livro. É um livro razoável, cuja leitura acabou por me agradar, contrariamente aos receios que eu tinha ao começar, e mesmo prejudicada por uma encadernação que é daquelas que se desfazem com um sopro, coisa de que o autor não é culpado mas vítima.

E quanto à questão que contribuiu para esta leitura, se desta vez José Murta Lourenço escreveu algo que tenha lugar no Bibliowiki, a resposta é não.

2 comentários:

  1. Sempre agradado com as suas criticas...se me disser por mail um endereço (murtalourenco@gmail.com) enviar-lhe-ei com muito gosto o meu ultimo romance...pode escaqueirá-lo à vontade...porque eu escrevo....porque sim������

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    1. E sou capaz de o fazer mesmo, até porque queria fazer-lhe umas perguntas relacionadas com um outro projeto que tenho, o Fantástico Algarve. Até já.

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