sexta-feira, 30 de março de 2018

Lido: Acho que Posso Ajudar

Conto após conto, esta coleção de contos digitais publicada pelo DN e pela Escrit'orio foi reduzindo a expetativa para o seguinte, à medida que, depois da agradável surpresa inicial com a do JP Simões, se foram sucedendo histórias que no melhor dos casos me mereceram uma encolhedela de ombros de indiferença, fazendo prever que a qualidade média iria deixar muito a desejar.

Eis senão quando me aparece à frente este Acho que Posso Ajudar, de mais um autor que nunca tinha lido, David Machado. E eu fiquei feliz, porque é o segundo conto realmente bom deste conjunto. Ainda por cima dificilmente podia ser mais diferente do primeiro.

Enquanto o conto de JP Simões é adulto até à medula, David Machado apresenta um conto infantil concebido em jeito de conto popular (e muito bem ilustrado por Mafalda Milhões, com ilustrações que por vezes são animadas, aproveitando assim da melhor forma as potencialidades da publicação eletrónica), completo com elementos de lengalenga e tudo. A história é sobre um rapaz de oito anos que tenta ajudar a avó, a qual tinha um problema: queria sair à rua mas não podia porque o vento lhe iria de certeza destruir o novo penteado. O que fazer? Ora, basta armar uma armadilha ao vento e depois trancá-lo num barracão, claro.

Só que esse ato original de auxílio e resolução de um problema vai causar uma catadupa de outros problemas, os quais o rapaz vai ter de resolver, não só porque gosta de ajudar mas também porque se sente responsável por os ter gerado. A história acaba convoluta, metendo monstros, balões, nuvens, bruxas e mais uma série de outras coisas, mas tão bem escrita, com um ritmo tão perfeito, que tudo parece estar no lugar que lhe é próprio, sem tirar nem pôr.

E é precisamente essa a mensagem que David Machado pretende transmitir: a de que todas as coisas têm o lugar que lhes é próprio, e qualquer tentativa para as manipular, por mais bem intencionada que seja, acaba por causar uma série de consequências indesejadas, para as quais será depois necessário encontrar respostas. E transmite essa ideia com total clareza sem para isso ter a necessidade de a esfregar na cara do leitor, o que só sublinha a qualidade da obra.

(Já agora, em relação à moral da história, eu concordo e discordo: concordo porque sim, é absoluta verdade que mexer em equilíbrios delicados pode redundar em desastre, mas discordo porque não, a resposta não é remeter-nos à inação e à promoção da imutabilidade das coisas. Porque elas, as coisas, mudam sempre, queiramos ou não; é essa a natureza do Universo, é assim que funciona tudo isto que nos rodeia e constitui: através da permanente mudança. A resposta tem de ser, portanto, a ação informada, porque só a informação e o conhecimento, só sabermos o melhor possível o que estamos a fazer, é capaz de reduzir a possibilidade de causarmos algum desastre com o que fizermos. Ou com o que deixarmos por fazer, pois também a inação pode ter consequências desastrosas.)

Fim de parêntesis que mostra que este conto, além de tudo o mais, ainda por cima convida à reflexão. O que mais lhe poderíamos pedir? Este é mesmo um conto francamente bom.

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